06/02/2023 | Categoria: Congressos
Como fazer a Reforma Administrativa nos Estados e Municípios

Definindo-se o que se quer com uma Reforma Administrativa, passamos ao ponto mais complexo, que diz respeito ao como se pode fazer tal reformulação. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer as diretrizes da atuação estatal nessa matéria, que presidirão e informarão todas os estudos e as propostas legislativas respectivas.

 

  1. Diretrizes

A partir da experiência de alguns entes (especialmente a do Rio Grande do Sul, que será adiante detalhada), é possível elencar, em rol meramente exemplificativo, as seguintes diretrizes:

  • Redução do crescimento vegetativo da folha: é preciso frear o crescimento nominal da folha de pagamento, cortando adicionais temporais, promoções exclusivamente baseadas no tempo de serviço e outras rubricas que tiram do gestor público o controle do crescimento da folha;
  • Extinção de vantagens temporais: trata-se de algo que boa parte dos entes ainda prevê (adicionais por tempo de serviço, anuênios, triênios, quinquênios, avanços, sextas-partes, etc.) e que são ruins não apenas porque têm um impacto fiscal negativo, mas também porque são instrumentos ultrapassados de gestão de pessoas, nos quais se premia o tempo e não a produtividade do servidor; é preciso ter um ponto de atenção para assegurar o respeito aos direitos adquiridos, mediante transformação dos adicionais atualmente conquistados pelos servidores em vantagem pessoal nominalmente identificada (VPNI), respeitando, assim, a irredutibilidade de vencimentos constitucionalmente assegurada (CF, art. 37, XV);
  • Extinção de incorporação de funções ou cargos em comissão: há quem sustente que, com a entrada em vigor do § 9º do art. 39 da CF (incluído pela EC nº 103, de 2019), já foram tacitamente revogadas todas as normas que preveem a incorporação de funções de confiança por servidores2; de toda forma, é recomendável fazer a revogação expressa de tais dispositivos eventualmente existentes na legislação dos entes subnacionais, até mesmo por questões de segurança jurídica e de evitar judicialização do tema;
  • Substituição de retribuições pecuniárias por outras formas de recompensa: muitas vezes, a questão salarial não é a única e nem mesmo a principal preocupação dos servidores públicos; algumas modificações pontuais na legislação podem trazer ganhos de qualidade de vida, motivação e qualificação para os servidores, sem que haja necessariamente um desembolso por parte do Estado; estamos falando, aqui, de regras de flexibilização de jornada, banco de horas, teletrabalho, instituição de um programa de qualificação, desburocratização do procedimento de obtenção de licenças médicas, etc.
  • Adaptação às melhores práticas sobre legislação de pessoal e de Legística e aperfeiçoamento/atualização da legislação, para obter ganhos de segurança jurídica e de clareza, evitando ou reduzindo a judicialização: é preciso atualizar a legislação dos entes subnacionais (que muitas vezes data de décadas atrás), de modo a trazer clareza, concisão, precisão, consistência, ordem lógica e previsibilidade; isso não apenas facilita o trabalho dos gestores públicos (especialmente daqueles que atuam “na ponta”, na prestação de serviços diretamente à população), mas também traz ganhos de segurança jurídica, evitando ou minimizado riscos jurídicos;
  • Adaptação das leis municipais ao modelo federal: o modelo federal, depois da Reforma de 1999/2001, constitui um parâmetro de comparação bastante sólido e de qualidade reconhecida; buscar adaptar o modelo estadual/municipal às regras federais pode ser um ótimo paradigma (algo que foi, inclusive, estimulado no âmbito da Lei que instituiu o Regime de Recuperação Fiscal – RRF3;
  • Fusão e racionalização de carreiras: caso se opte por incluir no objeto da reforma a análise das legislações específicas de carreiras, pode-se definir como uma das diretrizes a fusão de carreiras ou a criação de carreiras transversais, que deem mobilidade aos servidores para que desempenhem funções transdisciplinares em vários órgãos ou entidades da Administração, evitando perdas decorrentes de condenações por desvios de função e aumentando a flexibilidade da gestão de pessoas.

 

 

  1. Frentes de atuação

A legislação sobre servidores públicos espraia-se por diversos tipos e hierarquias de normas jurídicas. Geralmente, há disposições sobre o tema em nível constitucional (Constituição Estadual/Lei Orgânica Municipal), legal (estatuto dos servidores e estatuto dos militares, além das leis específicas de cada carreira) e até mesmo infralegal (decretos, portarias, etc.).

Diante da multiplicidade de normas jurídicas que regem o setor de pessoal da Administração Pública, é necessário estabelecer prioridades em termos de em quais frentes atuar. Nesse contexto, é possível aplicar o Princípio de Pareto e identificar os 20% da legislação que respondem por 80% dos impactos financeiros.

A partir das experiências de reforma administrativa em vários entes federativos, é possível concluir que cada espécie e nível normativo tem sua importância relativa descrita da forma seguinte:

a) Constituição Estadual e Lei Orgânica Municipal: nem todos os entes têm nesse nível regras sobre servidores públicos que possam ser reformadas (quando são normas “copiadas” da Constituição Federal, geralmente se trata de normas de observância obrigatória, sobre a qual o Estado/Município não pode dispor), mas, quando elas existem, sua reforma pode ter um impacto (financeiro, orçamentário, jurídico e de gestão) muito grande, porque se aplicam aos servidores de todos os Poderes e de todas as carreiras4.

b) Estatuto dos servidores: uma Lei que só pode ser alterada pela Assembleia ou Câmara Municipal por iniciativa do Governador ou Prefeito, respectivamente (CF, art. 61, § 1º, II, c, aplicável por simetria), e que atinge servidores de todas as carreiras e de todos os Poderes; nesse contexto, geralmente alterações feitas no Estatuto dos Servidores têm um excelente custo-benefício, porque podem ser realizadas com relativa facilidade (do ponto de vista jurídico, não político) e têm elevado impacto positivo de gestão administrativa e de gestão fiscal; há que se ter cuidado porque, apesar de a CF prever a existência de um regime jurídico único5, alguns entes da federação simplesmente ignoram tal mandamento, de modo que o mapeamento das normas estatutárias em vigor nem sempre é tão simples quanto parece.

c) Leis específicas das carreiras: a análise das legislações específicas que regem cada carreira pode mostrar alguns aspectos relevantes, tais como desvirtuamentos, ausência de uma efetiva carreira, gratificações/adicionais concedidos indistintamente, etc.; há uma dificuldade adicional de mapeamento da legislação, porque, especialmente nos Estados, a profusão de atos normativos regendo cada carreira pode tornar o trabalho muito extenso; mais uma vez, vale a pena analisar se não é o caso de se selecionar em quais carreiras atuar, uma vez que a maior parte do impacto geralmente se concentra naquelas que têm maior número de servidores (saúde, educação e segurança), embora essas geralmente não sejam as que paguem os salários médios mais altos.

d) Avaliação de Impacto Legislativo: paralelamente à análise e reformulação da legislação – um trabalho geralmente capitaneado por juristas ou especialistas de áreas conexas – faz-se indispensável realizar uma avaliação de impacto legislativo – trabalho geralmente levado a cabo por economistas, estatísticos, etc.; essa avaliação de impacto ex ante permite comparar possíveis atuações, analisando-lhes o custo benefício, além de servir de relevante arma de comunicação e convencimento para a aprovação das propostas6.

 


João Trindade é Consultor Legislativo do Senado Federal. Mestre (IDP) e Doutor (USP) em Direito Constitucional. Advogado, sócio do Trindade Camara Retes Barbosa Magalhães Pinheiro Advogados Associados, responsável pelos estudos que embasaram a Reforma Administrativa do Estado do Rio Grande do Sul, em parceria com a Comunitas. Professor dos cursos de Especialização em Direito Constitucional e de Mestrado em Direito e em Administração Pública do IDP.

[2]  “É vedada a incorporação de vantagens de caráter temporário ou vinculadas ao exercício de função de confiança ou de cargo em comissão à remuneração do cargo efetivo.”

[3] O art. 2º, § 1º, IV, da Lei Complementar nº 159, de 19 de maio de 2017, prevê como uma das condições para adesão ao RRF “a revisão do regime jurídico único dos servidores estaduais da administração pública direta, autárquica e fundacional para suprimir benefícios ou vantagens não previstos no regime jurídico único dos servidores públicos da União

[4]  Veja-se o exemplo dos arts. 29 e 33 da Constituição do Estado de São Paulo, que preveem adicionais temporais, como a “sexta-parte” (20% após vinte anos de serviço) e anuênios.

[5]  (CF, art. 39, caput, na redação pré-EC nº 19/98, restaurada pelo STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.315/DF)

[6] Confira-se, no tópico específico sobre avaliação de impacto legislativo, a análise comparativa entre a proposta original do Estado, a oferecida pela consultoria externa e a aprovada pela Assembleia Legislativa, no caso do Rio Grande do Sul.

  o autor | Autor: João Trindade Cavalcante Filho
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