P nº 1.026 e simplificação da contratação pública: alguma coisa está fora da ordem?
08/01/2021 | Categoria: Licitações
Caetano Veloso, em sua canção "Fora da Ordem", chama atenção para a dessintonia da nova ordem mundial. Parafraseando Caetano, tudo levava a indicar que havia uma ordem quanto à contratação pública, que, a despeito da iminente "nova Lei de Licitações" (ainda pendente de sanção pelo presidente da República), ainda seria formada essencialmente pela Lei nº 8.666/93, além de outros sistemas normativos, como o Regime Diferenciado de Contratação (RDC) e o próprio regramento do pPregão.
Todavia, não menos induvidoso — eis, portanto, razão a Caetano — é que a Lei nº 8.666/93 não deu conta de resolver os problemas advindos da nova ordem mundial, causada pela epidemia decorrente do coronavírus. Logo, outro sistema foi necessário de ser lançado, mais ágil, reiteradamente eficiente e que, enfim, "desse conta do recado". Surgiu a sistemática de contratação pública inserida na Lei nº 13.979/20 — a Lei do Coronavírus [1].
Tal regramento de contratação pública ultrapassou, por extrema necessidade, o extremamente burocrático mecanismo de contratação previsto na Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, bem assim nos demais instrumentos normativos correlatos, também relacionados ao processo de contratação pública. Vejam que nem mesmo o célere procedimento oriundo da modalidade pregão era capaz de atender aos reclamos da Covid-19.
Certo é que o vírus não desapareceu e nem deixa rastro de quando findará. Mesmo a despeito de uma nova vacina, vigora a nova peleja (a peleja do diabo com o dono do céu): a vacinação em massa de toda a população. Eis uma nova saga quanto a novos processos de contratação pública. Decerto, seguir a Lei nº 8.666/93 ou qualquer norma do sistema ordinário de contratação não impõe qualquer resolução do problema. Diante de tais fatos, e da necessidade de solucionar o que ainda pende de solução, surgiu na quarta-feira (6/1), a MP nº 1.026 ("Dispõe sobre as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas, insumos, bens e serviços de logística, tecnologia da informação e comunicação, comunicação social e publicitária e treinamentos destinados à vacinação contra a Covid-19 e sobre o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19") — "alguma coisa fora da ordem" do corriqueiro sistema de contratação pública.
Referida MP flexibiliza, na esteira do que é previsto na Lei nº 13.979/20, vários dispositivos do sistema geral de contratação pública: 1) possibilidade de contratar com empresa impedida de contratar com o poder público ou suspensas de licitar (artigo 2º, §3º); 2) flexibilização quanto à habilitação (artigo 7º); 3) dispensa de fases do procedimento preparatório da contratação (artigo 4º); e 4) prazos reduzidos pela metade (artigo 8º), dentre outros. Parece ser mais do mesmo, mas do mesmo sistema extraordinário, o que soluciona, eficientemente, as querelas que são impostas.
Qual recado, portanto, é conferido pela nova normativa decorrente da referida medida provisória? O mesmo que fora disciplinado na Lei nº 13.979/20: o que de, diante de uma crise sanitária e de saúde sem quaisquer precedentes, o nosso sistema de contratação pública não possui mecanismos para solução dos problemas que são impostos. Dito de outro modo, ou se flexibilizam as normas de contratação ou nada (ou quase nada) é contratado; como a vida não ousa esperar, a burocracia cede espaço à liberdade das formas.
Veja que ao se falar de uma flexibilização estamos trabalhando dentro do sistema jurídico presente. Não se entende como válida uma flexibilização ou algo semelhante que se mostre metajurídica. Assim, decisões judiciais, por exemplo, que clamam por critérios abstratos de justiça, afastando normas positivas, soam totalmente disformes do ponto de vista constitucional e são manifestações verdadeiramente autoritárias. O regime de exceção necessita vir das fontes legitimas de edição normativa. Logo, a figura das medidas provisórias emerge com total relevância e destaque nesse cenário pandêmico.
A MP nº 1.026 constitui mais uma norma que foge aos padrões rígidos do burocrático e ineficiente processo de contratação pública no país. Deve-se destacar que a conotação negativa conferida ao predicado "burocrático" diz respeito àquela burocracia fetichista ainda hoje presente em grande parte da organização administrativa brasileira. A burocracia perniciosa aqui criticada, relacionada ao sistema vigente de contratações públicas, concerne ao apego excessivo da forma pela forma, à exigência de requisitos que não auxiliam em nada no deslinde das controvérsias postas, à exigência custosa e desnecessária de inúmeros documentos, a uma cultura de constante desconfiança dos que querem contratar com o poder público. Sem embargo, a burocracia, no sentido da existência de mecanismos e procedimentos que auxiliam o controle da coisa pública, proporcionais ao alcance do interesse público, mostra-se necessária para que haja a manutenção de uma verdadeira República, na qual os que governam não estão a lidar com negócios próprios e privados. Pelo contrário. Exercem função e, portanto, atuam em nome de outrem.
É nessa toada que a nova MP, buscando solucionar, do ponto de vista das contratações públicas, a crise sanitária que se encontra presente, reduz, modifica e elimina diversas exigências típicas daquela burocracia fetichista, mas sem, contudo, eliminar o aspecto burocrático próprio do poder público. Não se está, pois, a autorizar que a Administração Pública contrate como se fosse uma pessoa jurídica de direito privado.
Urge compreender que a demanda do poder público não é simetricamente proporcional aos excessivos procedimentos legalistas e burocráticos do ordinário regime de licitações no Brasil, sobremais em casos em que a urgência da vida não abre espaços à espera do tempo (a MP nº 1.026, em sintonia com a Lei nº 13.979/20, é um forte indicativo dessa mudança, ainda tímida, mas simbolicamente significativa). Algo parece estar fora da ordem!
Algo está fora da ordem da nova ordem mundial: "Eu não espero pelo dia/ Em que todos/ Os homens concordem/ Apenas sei de diversas Harmonias bonitas/ Possíveis sem juízo final". Por um sistema de contratação pública diverso de harmonias bonitas, mas possível — e sem juízo final.
Conteúdo gentilmente cedido pelos autores ao Sollicita, originalmente publicado no Conjur.
[1] Sobre o tema, ver "CARVALHO, Guilherme; MAFFINI, Rafael; AGI: Samer. Lei do Coronavírus: Lei nº 13.979/20: comentada artigo por artigo. Brasília: CPIURIS. 2020".
o autor | Autor: Guilherme Carvalho
Compartilhar no
Comentários
Sobre a Academia
A Academia Brasileira de Formação e Pesquisa atua há mais de vinte anos na formação de pessoas, organização de processos e procedimentos administrativos. Temos como foco principal a formação e capacitação de Recursos Humanos dos setores público e privado.
Possuímos significativo diferencial competitivo em relação ao mercado, uma vez que contamos com profissionais de grande experiência e formação técnica especializada. Desenvolvemos atividades em órgãos públicos de destaque como Governos de Estados, Prefeituras, Tribunais de Contas, Tribunais de Justiça Estaduais e Federais, Autarquias Federais, Bancos Federais, dentre outros.
Diante das particularidades de cada órgão nos especializamos em construir produtos de forma singular e customizados para atender as necessidades específicas de cada demandante. Para isso, possuímos quadro acadêmico de grande envergadura e multidisciplinar, o que possibilita desenvolvermos programas de treinamento e formação avançada customizados.
Na área de consultoria, atuamos nos diversos seguimentos. No setor público, destacamos reforma administrativa, legislação de pessoal, gestão arquivística de documentos, implementação e aplicabilidade das Leis 14.133/21 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – e 13.709/18 – Lei Geral de Proteção de Dados.
O que Fazemos
Nossos profissionais dedicam-se ao estudo aprofundado de atividades acadêmicas e pesquisas. Elaboramos e revisamos material teórico nas seguintes áreas: administração pública, recursos humanos, comunicação administrativa, planejamento financeiro, administração de patrimônios, logística, contratos e licitações.
Construímos modelos de relacionamento corporativo através de parceiras consultivas, aprimoramos os resultados por meio de levantamento de dados e formatação de relatórios personalizados.
Produzimos pareceres personalizados e elaboramos planos de gestão complexos dentro das áreas de logística corporativa e gestão de informações, auxiliando na criação de estratégias corporativas nacionais e internacionais.
Quem Somos
Realizamos consultorias, congressos, seminários, workshops, cursos em todo Brasil nas modalidades presencial, telepresencial, EAD e híbrido, in-company e abertos nas mais diversas áreas do conhecimento, tais como: direito – todos os ramos – , administração empresarial, gestão pública, governança pública e privada, controle externo e interno (compliance).
Nossos Docentes
Doutor em Ciência Política e tem mestrado em Administração Pública, ambos pela Universidade de Brasília (UnB). Professor adjunto da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Ciência da Informação e Documentação da UnB, onde ministra disciplinas nas áreas de Administração Pública e Ciência Política. Ele também é membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UnB, onde orienta alunos de mestrado e doutorado em suas pesquisas. Tem trabalhado como consultor e assessor em políticas públicas para governos estaduais e municipais. Ele tem experiência em áreas como gestão pública, políticas sociais, participação e controle so...
Bacharel em Engenharia de Computação (PUC-Campinas), certificado em: Certified AWS Solutions Architect Associate; Certified SCRUM Master; Certified SCRUM Developer; Center of Internet Security Foundations; AWS Standards; Well Architect Framework. Possui conhecimento nas áreas de: Arquitetura de Soluções; Cultura DevOps; Engenharia de software; Cloud Computing; Redes de computadores; Administração de Bancos de Dados; Segurança da informação; Adequação de ambientes à LGPD; Inteligência Artificial; Sistemas operacionais; Sistemas distribuídos; Infraestrutura de TI. Atuou na equipe de pesquisa e desenvolvimento da Siemens, na engenharia de transformadores de alta potência, onde ...
Consultor jurídico e advogado, com destacada atuação em temas de direito corporativo, compliance, proteção de dados e mídias sociais. Vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico – ABRADADE. Membro do Conselho de Ética da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP). Doutorando e mestre em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas/SP (FGV Direito SP). Professor no curso de graduação da Escola de Negócios Saint Paul e em programas de MBA e pós-graduação em Compliance. Autor e coordenador de livros, obras coletivas, artigos e estudos publicados no Brasil e no exterior, adotados como bibliogra...
Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, com habilitação em Direito do Trabalho e Previdenciário – 1989; Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília – 2002; Mestre em Direito das Relações Sociais na Pontifícia Universidade Católica da São Paulo – 2013; Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região de 19.5.2003 a 21.4.2014, promovido pelo critério de merecimento; Ministro do Tribunal Superior do Trabalho desde 22.4.2014; Professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho no Instituto de Ensino Superior de Brasília – IESB....
Ministro do Tribunal de Contas da União. Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília, com vasta experiência em Direito Administrativo e Direito Constitucional. Ministrou cursos na Escola da Magistratura do Distrito Federal e Territórios, Escola da Magistratura do Trabalho, Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Instituto Superior de Brasília, Centro Universitário de Brasília e Instituto Serzedello Corrêa, entre outros. Zymler é autor das obras “Direito Administrativo e Controle”; “Regime Diferenciado de Contratação – RDC”– em parceria com Laureano Canabarro Dios; “O Controle Externo das Concessões de Serviços Públi...
Ministro do Tribunal de Contas da União desde 2008. Doutorando em Direito. Mestre em Direito, Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia pela George Washington University, Estados Unidos. Especialista em Engenharia de Produção de Petróleo. Petrobras/Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduado em Direito. Universidade de Brasília (UnB). Graduado em Engenharia Civil, Universidade Federal de Goiás (UFG). Autor de dezenas de publicações na área de Administração Pública e Orçamento. Professor no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Autor de diversos livros....
Doutor em Direito. Mestre em Constituição e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP, 2014). Especialista em Direito Constitucional (IDP, 2011). Bacharel em Ciências Jurídicas pelo Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB, 2009). Professor de Direito Constitucional Aplicado da Pós-Graduação em Direito Legislativo do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB/Senado Federal). Professor de Controle de Constitucionalidade do curso de Graduação em Direito do IESB. Professor de Estudos de Caso de Direito Constitucional do curso de Graduação em Direito do IDP. Autor de diversas obras, dentre elas “Processo Legislativo Constitucional” (2ª Edição, Editora...
Doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Uniceub. Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera. Ex-Procurador do Estado do Amapá – Classe Especial, com atuação na área consultiva e nos tribunais superiores em Brasilia (DF). Professor de graduação e pós-graduação em Direito em Brasília. Palestrante e professor de pós-graduação em várias faculdades. Advogado militante, com atuação prioritária nos tribunais superiores e na área de licitações e contratos. Bacharel em Adm...