06/08/2021 | Categoria: Licitações
Do saneamento das nulidades no processo de contratação pública

Um dos aspectos mais polêmicos atinentes à contratação pública no Brasil está relacionado às nulidades, seja no processo licitatório, seja no decorrer da execução do contrato. Em ambas as hipóteses, a declaração de nulidade causa manifestos prejuízos à Administração, como também aos licitantes e contratados. Logo, priorizar a salvação do processo licitatório e manter a higidez do contrato são, sempre que possível, a melhor alternativa administrativa e que vão ao encontro do melhor interesse público (primário).

Comparativamente à Lei nº 8.666/1993, há, na Lei nº 14.133/2021, uma franca opção legislativa quanto à sanatória dos vícios apontados no processo licitatório, como também uma manifesta preferência pela manutenção dos contratos, alçando a nulidade como opção derradeira, declarada apenas e tão somente quando inexistir a possibilidade de manutenção da relação contratual, levando-se em consideração, em quaisquer das hipóteses, os mais variados fatores, que serão explorados ao longo desse texto.

Para melhor facilitação da leitura, o escrito será dividido em duas partes. A primeira delas tratará das nulidades ocorridas no processo licitatório; a segunda abordará as nulidades quando já existente uma relação contratual formada, perfectibilizada no contrato administrativo.

No que toca ao processo licitatório, a prioridade do legislador quanto à preservação dos atos realizados no curso de todo o processo é comprovada mediante a leitura do art. 71, o qual enumera uma ordem de preeminência quando do encerramento da licitação. O aludido art. 71 compõe o Capítulo VII do Título II, dedicando-se à conclusão do processo licitatório. Reza o mencionado dispositivo legal que, “encerradas as fases de julgamento e habilitação, e exauridos os recursos administrativos, o processo licitatório será encaminhado à autoridade superior, que poderá: I – determinar o retorno dos autos para saneamento de irregularidades (...)”.

Primordialmente, há a incontestável intenção do legislador em sanar as irregularidades verificadas no curso do processo licitatório, o que se comprova pelo fato de o primeiro inciso que integra o caput dispor neste exato sentido. Para além, e reforçando esta ordem de eleição, o § 1º estabelece que “ao pronunciar a nulidade, a autoridade indicará expressamente os atos com vícios insanáveis, tornando sem efeitos todos os subsequentes que dele dependam, e dará ensejo à apuração de responsabilidade de quem lhes tenha dado causa”. Dito de outro modo, o § 1º expressa que a declaração de nulidade requer, precedentemente, a indicação, fundamentada e motivada, dos vícios impassíveis de serem sanados; logo, a sanatória é medida que se impõe, sendo a declaração de nulidade, quanto ao processo licitatório, a mais extrema medida, alcançável se, e somente se, não houver a possibilidade de regularizar o ato.

A salvação do processo licitatório, sempre que possível, perpassa razões de ordem logicamente objetiváveis, notadamente pelos mais variados custos concernentes à realização de outro processo licitatório. Isso se comprova, inclusive, pelo incremento nos valores relacionados à contratação direta, que, comparativamente à Lei nº 8.666/1993, foram substancialmente expandidos. Há, portanto, na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o reconhecimento de que licitar é dispendioso e, por isso, repetir, desnecessariamente, uma licitação não é a mais proveitosa escolha, sendo, do mesmo modo, medida francamente ineficiente.

No que concerne aos contratos, a Lei segue a mesma lógica, priorizando a manutenção da avença, de modo que a declaração de nulidade somente possa tomar assento quando outra resolução não puder ser conferida ao contrato. Por outro lado, faz-se possível a preservação de uma contratação eivada de vícios, modulando os efeitos da pronúncia do vício apontado, como, por exemplo, a adoção de medidas preventivas ou, até mesmo, a utilização de medidas de conteúdo compensatório, prática que já vinha sendo aceita no âmbito da jurisprudência do Tribunal de Contas da União.

Há de se destacar, igualmente, que a Lei nº 14.133/2021 segue o mesmo desiderato já contido na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), conforme, expressamente, determina a parte final do art. 5º. Isso porque o art. 20 da LINDB inibe decisões fundadas em valores abstratos, sem que se considerem as consequências práticas da decisão tomada na esfera administrativa, como também nas esferas controladora ou judicial.

Este é o silogismo literal que se dessume da leitura do caput do art. 147: “constatada a irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual, caso não seja possível o saneamento, a decisão sobre a suspensão da execução ou sobre a declaração de nulidade do contrato, somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público, com avaliação, entre outros, dos seguintes aspectos (...)”.

Analisando o caput, é possível verificar que há uma ordem, antecedente ao pronunciamento da nulidade, que deve, rigorosamente, ser seguida: 1) observar se se faz possível o saneamento; 2) a existência do interesse público para que haja a suspensão da execução ou a declaração de nulidade do contrato; 3) avaliação de outros tantos aspectos, não exaustivos, dispostos em onze incisos. Passa-se, portanto, à apreciação de cada um deles.

Inicialmente, o inciso I do caput do art. 147 impõe que a Administração deve avaliar os “impactos econômicos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato”. Logo, deve o administrador medir quais são as consequências decorrentes da paralisação do contrato ou mesmo da não conclusão do processo licitatório, fatores estes que, em quaisquer dos casos, podem desaguar em uma contratação direta, acaso o objeto licitado seja de iminente indispensabilidade.

Já no inciso II, deve a Administração ponderar os “riscos sociais, ambientais e à segurança da população decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato”. Em alguns casos, a não concretização do objeto do contrato pode ocasionar danos impassíveis de serem reparados em momento posterior, caso não seja dada continuidade à execução contratual. É o caso, por exemplo, dos riscos ambientais oriundos de uma obra pública inacabada.

Igualmente, no inciso III, há a necessidade de comedir a “motivação social e ambiental do contrato”, que poderá gerar efeitos nocivos quanto à segurança das pessoas. O contrato, como operação econômica[1], possui uma motivação social, não se restringindo aos interesses das partes contratantes.

O inciso IV dispõe que também deve ser levado em consideração o “custo da deterioração ou da perda das parcelas executadas”. Em outros termos, há a necessidade de estimar as perdas e os acréscimos de custos das mais variadas ordens, empreendendo uma análise comparativa com os atrasos na fruição do objeto[2]. Na mesma toada, o inciso V, o qual assevera que também dever ser considerada a “despesa necessária à preservação das instalações e dos serviços já executados” e o inciso VI, que pondera a “despesa inerente à desmobilização e ao posterior retorno das atividades”.

Na mesma ordem, o inciso VII, do caput do art. 147, sopesa que, para declarar a nulidade de um contrato, a Administração igualmente deve “avaliar as medidas efetivamente adotadas pelo titular do órgão ou entidade para o saneamento dos indícios de irregularidades apontados”. Ou seja, não é suficiente que haja sido detectada a irregularidade, sendo imperioso que a Administração tenha agido no sentido de sanear os indícios de irregularidades apontados. Tal disposição normativa vai ao encontro do inconteste desígnio normativo, encontrado em várias partes da Lei nº 14.133/2021, quanto ao permanente gerenciamento de riscos e controle preventivo; logo, é imprescindível que, antes de declarar a nulidade, tenha a Administração agido preventivamente, daí a necessidade de permanente controle da gestão dos contratos (vide, por exemplo, conteúdo contido no art. 169).

O inciso VIII segue a esteira das disposições insertas nos incisos I, IV e VI, antes mencionados, quando, do mesmo modo, considera o “custo total e estágio de execução física e financeira dos contratos, dos convênios, das obras ou das parcelas envolvidas”. É indispensável que o Poder Público avalie as consequências práticas da decisão que venha a ser tomada, sobretudo quando já se encontra em estágio avançado o adimplemento do contrato. Mesmo na hipótese de descumprimento parcial do ajuste pelo contratado, a solução adotada pelo legislador é a finalização do pacto contratual, sem prejuízo do ressarcimento de possíveis perdas e danos. É antieconômico decretar a nulidade de um contrato quando já cumprido, substancialmente, o objeto contratual.

Sem prejuízo de todas os aspectos já transcrevidos, o inciso IX aponta que a Administração contratante deve, antes de decretar a nulidade do contrato, analisar o “fechamento de postos de trabalho diretos e indiretos em razão da paralisação”. A contratação pública traduz-se em verdadeira política pública e, nesse sentido, a mensuração dos aspectos sociais relacionados ao fechamento de postos de trabalho implica graves riscos sociais, com impactos econômicos que podem ser significativos, a depender da magnitude do objeto contratado. Como exemplo, a paralisação de uma grande obra pública em um Município de pequeno porte compromete a economia local, ocasionando as mais imprevisíveis variações sociais, as quais podem ser evitadas com a manutenção do contrato.

Finalmente, o inciso X destaca um dos aspectos mais relevantes: o “custo para a realização de nova licitação ou celebração de novo contrato”. Decerto, ao declarar a nulidade de um contrato, a Administração deve adotar soluções efetivas que propiciem a finalização do objeto anteriormente licitado, seja através de um novo processo licitatório, invariavelmente dispendioso, seja efetivando uma contratação direta, fato que também deve ser evitado, avaliando as implicações civis (art. 73, da Lei nº 14/133/2021 – contratação indevida) e até criminais (art. 337-E, do Código Penal Brasileiro – contratação ilegal).

Por derradeiro, o legislador preocupou-se com o “custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação”, significando que os mesmos recursos poderiam ser alocados em outros projetos, proporcionando incremento na economia e oportunizando novas perspectivas de trabalho.

Desse modo, estabelecidos as mais diversas variáveis que devem ser levadas em consideração para professar a nulidade de um contrato, sendo tal medida, por expressa vontade do legislador, inteiramente residual, o parágrafo único do art. 147 ratifica a disposição contemplada no caput, noticiando que “caso a paralisação ou anulação não se revele medida de interesse público, o poder público deverá optar pela continuidade do contrato e pela solução da irregularidade por meio de indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e da aplicação de penalidades cabíveis”.

Logo, para decretar a nulidade de um contrato, é necessário que a Administração, primeiramente, diligencie no sentido de sanar a irregularidade verificada, considerando todos os aspectos – mas sem prejuízo de outros – estabelecidos nos onze incisos do caput do art. 147, mantendo, sempre que possível, o contrato, a menos que suficientes razões de interesse público direcionem em sentido diverso.

De todo modo, mesmo pronunciando a nulidade, deverá a Administração solucionar as irregularidades assinaladas por meio de indenização por perdas e danos, direito patrimonial disponível, segundo exegese do parágrafo único do art. 151 da Lei nº 14.133/2021, procedendo, se for o caso, à apuração da responsabilidade e à aplicação das penalidades cabíveis, medidas estas que também podem ser submetidas às alternativas consensuais de solução de controvérsias, face à previsão dos dispositivos que integram o Capítulo XII da mesma Lei, privilegiando a benfazeja política conciliatória.

Conteúdo gentilmente cedido pelos autores ao Sollicita, originalmente publicado no Conjur.

[1] ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina. 2021.

[2] O problema relacionado às obras paralisadas ou inacabadas não passa despercebido pelos órgãos de controle. Dados do Tribunal de Contas da União apontam, após análise de mais de 30 mil obras públicas financiadas com recursos federais, que 30% foram consideradas paralisadas ou inacabadas, o que corresponde a 20% do investimento previsto. Disponível em https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/obras-paralisadas-no-pais-causas-e-solucoes.htm Acesso em 01 de agosto de 2021

  o autor | Autor: Guilherme Carvalho
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