2022-02-04 Divulgação do edital de licitação e o jornal de grande circulação
04/02/2022 | Categoria: Licitações
Como procedimento de natureza jurídico-administrativa, aos atos da contratação pública, salvo raras exceções previstas expressamente em lei, deve ser garantida a máxima publicidade, conferindo maior transparência à rotina administrativa e, mais que isso, possibilitando ampla competitividade a possíveis licitantes.
Por assim ser, tão logo finalizada a fase interna da licitação, e após a edição do parecer jurídico a que faz referência o artigo 53 da Lei nº 14.133/2021, o artigo 54 contextualiza a divulgação do instrumento convocatório, dispondo, em seu caput, que "a publicidade do edital de licitação será realizada mediante divulgação e manutenção do inteiro teor do ato convocatório e de seus anexos no Portal Nacional de Contratação Pública (PNCP)".
O caput do artigo 54 parece noticiar uma terminação, como se a publicação no PNCP fosse, por si só, suficiente à validade da divulgação do edital. Todavia, ao que se percebe, o § 1º do mesmo artigo 54 desfaz uma inicial interpretação isolada da redação do caput, condicionando, por igual, a divulgação do edital em outros meios, sem os quais estaria a publicidade potencialmente comprometida.
Isso porque o § 1º, a que acima se fez referência, não possibilita, ao menos literalmente, qualquer outra interpretação que não a de obrigatoriedade de divulgação do edital para além da forma prevista no caput (publicação no PNCP), adicionando outros meios: "sem prejuízo do disposto no caput, é obrigatória a publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do Estado, do Distrito Federal ou do município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, bem como em jornal de grande circulação".
Perceba-se, portanto, que a publicação no PNCP não é suficiente, porquanto o § 1º exige, impositivamente, a utilização de outros meios. Trata-se, bem se diga, de um manifesto retrocesso, além de proporcionar francas desconfianças à validade e utilidade do Portal Nacional, abrindo margens a abstrações múltiplas.
Bem se veja que o legislador destinou um Título específico na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos ao Portal Nacional de Contratações Públicas, determinando, salvo algumas exceções (especialmente artigo 196 — municípios de menos de 20.000 habitantes), sua imediata aplicabilidade. Lado outro, condicionou, indispensavelmente, a eficácia dos contratos e de seus aditamentos à divulgação no PNCP (artigo 94, caput).
Vários dispositivos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos evidenciam que o PNCP é suficiente para conferir publicidade aos atos praticados no curso de uma contratação pública, sendo que os demais instrumentos de divulgação, adrede mencionados, parecem despontar, muito mais, como reforço à publicidade, teorizando uma facultatividade a ser — ou não — utilizada pela Administração.
Logo, tudo indica que a Lei nº 14.133/2021 também se atentou para o fato de poder conferir à Administração outros meios de divulgação dos atos perpetrados no transcorrer do processo de contratação pública, os quais podem ser utilizados, na conveniência e oportunidade da Administração — logo, a seu discricionário juízo —, maiormente quando a publicação no PNCP não for, por si só, suficiente.
Anteriormente ao lançamento da versão inicial do Portal Nacional de Contratações Públicas, ocorrido em 09 de agosto de 2021, questionou-se sobre a imediata aplicabilidade da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, havendo alguns órgãos jurídicos opinado, naquela quadra, pela imediata aplicação, a despeito da então inexistente plataforma do PNCP, desde que houvesse a divulgação dos atos de contratação em outros meios, especialmente os sítios eletrônicos oficiais da Administração.
Ocorre que o PNCP já existe, confiando ao caput do artigo 54 ainda mais ampla e terminante aplicabilidade. Logo, o § 1º do mesmo art. 54 deve ser interpretado tão apenas como um reforço à norma constante no caput, sem que se exija a impostergável obrigatoriedade de divulgação em todos os outros meios a que faz menção.
Noutro contexto, o maior embaraço contido no § 1º do artigo 54 não se limita a condicionar a validade do ato de publicação em outros meios de divulgação, muitos dos quais usualmente empregados pela Administração — a exemplo dos Diários Oficiais —, mas sim em apologizar instrumentos vetustos e anosos, distraídos de qualquer vertigem de contemporaneidade e que remontam a outra época e período, em que a utilização de meios digitais era uma raridade.
Eis, portanto, o primordial desafio encontrado no § 1º do artigo 54, quando se refere a jornal diário de grande circulação. O "bem como" utilizado pelo legislador soa, definitivamente, como uma conjunção aditiva. Não fosse a "derrubada" do veto presidencial pelo Congresso Nacional, até que se poderia cogitar uma outra interpretação, voltada ao atendimento, dentre outros, do princípio da economicidade.
Ocorre que, nada obstante o § 1º do artigo 54 haver sido objeto de veto presidencial, o Congresso Nacional, não o acatando, arruinou, sem qualquer pejo e em indolente desatenção aos princípios da eficiência, eficácia e, sobretudo, economicidade, a interpretação sistemática que poderia ser conferida ao artigo 54 como um todo, de modo a tornar obrigatória a dispensável publicação em "jornal de grande circulação".
A par do mastodôntico obstáculo quanto à precisa acepção do termo, cuja vagueza espraia-se na mesma velocidade e dinâmica de sua inutilidade, à míngua de uma determinação expressa sobre a definição de "grande circulação", a apologia obrigatória criada — não se sabe por qual estímulo — pelo Legislativo, empós a derrubada do veto presencial, torna a divulgação do edital eivada de nulidade, exclusive se houver a publicação no chistoso meio privado de que se pode valer a Administração Pública para conferir validade aos atos oficiais.
É que, para o Legislativo, a derrubada do veto presidencial a tão ilógico dispositivo legal tem o condão de protagonizar a impreterível publicidade almejada pela norma. Logo, sem o extrato do edital no "folhetim", carece a licitação da desejada competividade, eis que possivelmente corrompido o princípio da publicidade.
As razões do veto presidencial são mais que óbvias e dispensam, inclusive, qualquer complementar explanação: "Todavia, e embora se reconheça o mérito da proposta, a determinação de publicação em jornal de grande circulação contraria o interesse público por ser uma medida desnecessária e antieconômica, tendo em vista que a divulgação em 'sítio eletrônico oficial' atende ao princípio constitucional da publicidade".
Seguem outras razões para o veto: "Além disso, tem-se que o princípio da publicidade, disposto no artigo 37, caput da Constituição da República, já seria devidamente observado com a previsão contida no caput do artigo 54, que prevê a divulgação dos instrumentos de contratação no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), o qual passará a centralizar a publicidade dos atos relativos às contratações públicas".
Por fim, não há negar que outro questionamento que pode ser feito quanto a essa matéria, o qual reside na indagação sobre a não publicação do edital em jornal de grande circulação. Nesse sentido, tratando-se, como se disse, de norma de conteúdo impositivo, estaria comprometido todo o certame? Antecipamos que não.
Imagine-se, por exemplo, o caso em que uma determinada licitação, seguindo todo o séquito procedimental que antecede o artigo 54 e contando, igualmente, com a edição de opinião do órgão de assessoramento jurídico prevista no artigo 53, tenha seu edital publicado no PNCP, em Diários Oficiais, bem como em outros meios eletrônicos da própria Administração Pública, mas que, por outro lado, não tenha sido publicada em jornal de "grande circulação". Neste específico caso, verificada a possível nulidade depois de transcorrida toda a fase externa, na iminência de homologação do certame, é imprescindível a republicação do edital? Novamente, adiantamos que não.
Muito além dos argumentos alusivos à economicidade, o § 1º do artigo 54 deve ser interpretado não apenas com o caput deste mesmo dispositivo legal, mas também com outras normas encontradas no corpo da Lei nº 14.133/2021, como, por exemplo, o artigo 71, que prioriza, sempre que possível, a sanatória de irregularidades.
Portanto, a hipotética desobediência à parte final do § 1º do artigo 54 não eiva o processo licitatório de nulidade absoluta, sobremais quando o principal objetivo da divulgação é atingido e comprovado por outros meios oficiais, é dizer, quando resta atendido o princípio da publicidade.
Cabe ao órgão de assessoramento jurídico opinar nesse sentido, possibilitando à Administração, na linha da norma prevista no artigo 71, pôr fecho ao processo licitatório e adentrar na fase da contratação pública de maior utilidade — o contrato e sua subsequente execução. Quer-se dizer, assim, que a licitação não é um fim em si mesmo, mas um caminho para suprir a ausência de espontânea autonomia da vontade contratual da Administração Pública.
Se possível, por estrita observância ao plexo principiológico encontrado no artigo 5º, cuja aderência às normas contidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) são cogentes, é imperativo que, atendida a desejada publicidade, não se prenda a Administração a indesejada problematização burocrática criada pela parte final do § 1º do artigo 54, devendo-se, sempre, ponderar os efeitos práticos da decisão.
Bem ou mal, o jornal de grande circulação, para o contexto das contratações públicas, faz parte de uma história que não mais precisa ser narrada; é "lei para inglês ver"; um adereço vazio, "com o qual e sem o qual" o cenário das contratações públicas continua "tal e qual".
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em Administração, sócio-fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).
Conteúdo gentilmente cedido pelos autores a Acadêmia, originalmente publicado no Conjur.
o autor | Autor: Guilherme Carvalho
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Ministro do Tribunal de Contas da União. Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília, com vasta experiência em Direito Administrativo e Direito Constitucional. Ministrou cursos na Escola da Magistratura do Distrito Federal e Territórios, Escola da Magistratura do Trabalho, Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Instituto Superior de Brasília, Centro Universitário de Brasília e Instituto Serzedello Corrêa, entre outros. Zymler é autor das obras “Direito Administrativo e Controle”; “Regime Diferenciado de Contratação – RDC”– em parceria com Laureano Canabarro Dios; “O Controle Externo das Concessões de Serviços Públi...
Ministro do Tribunal de Contas da União desde 2008. Doutorando em Direito. Mestre em Direito, Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia pela George Washington University, Estados Unidos. Especialista em Engenharia de Produção de Petróleo. Petrobras/Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduado em Direito. Universidade de Brasília (UnB). Graduado em Engenharia Civil, Universidade Federal de Goiás (UFG). Autor de dezenas de publicações na área de Administração Pública e Orçamento. Professor no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Autor de diversos livros....
Doutor em Direito. Mestre em Constituição e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP, 2014). Especialista em Direito Constitucional (IDP, 2011). Bacharel em Ciências Jurídicas pelo Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB, 2009). Professor de Direito Constitucional Aplicado da Pós-Graduação em Direito Legislativo do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB/Senado Federal). Professor de Controle de Constitucionalidade do curso de Graduação em Direito do IESB. Professor de Estudos de Caso de Direito Constitucional do curso de Graduação em Direito do IDP. Autor de diversas obras, dentre elas “Processo Legislativo Constitucional” (2ª Edição, Editora...
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